Face à dívida, vem a vontade de auditar!
por Yorgos Mitralias
Este texto é o prólogo da edição grega do livro "Façamos o inquérito à dívida! – Manual para as auditorias da dívida do Terceiro Mundo" (Menons l'enquête sur la Dette ! – Manuel pour les audits de la dette du Tiers Monde). A edição grega é acrescida por um longo e importante texto de Maria Lucia Fattorelli sobre as experiências de auditoria da dívida pública do Equador e do Brasil, assim como do texto de Eric Toussaint intitulado "Alguns fundamentos jurídicos da anulação dívida".
A crise da dívida afectou o Terceiro Mundo desde 1982 e o cerco apertou-se fortemente em torno dos povos do Sul. A grande crise financeira que eclodiu no Norte no período de 2007-2008 atingiu também os povos da Europa. Trinta anos de luta contra a dívida do Sul permitiram produzir alternativas radicais e consistentes. Entre elas, o conceito de auditoria da dívida é uma ideia-força. Mas como lançar uma auditoria da dívida?
Não há dúvida de que as diferenças entre as crises da dívida no Norte e no Sul são reais e nada insignificantes. No entanto, tanto ao Sul como ao Norte, os objectivos de uma verdadeira auditoria da dívida pública podem ser enunciados da seguinte forma:
O primeiro objectivo de uma auditoria é esclarecer o passado, desfazer a teia da dívida, fio por fio, para reconstruir as sequências que levaram ao impasse actual. O que aconteceu com o dinheiro de tal empréstimo, em que condições o empréstimo foi concedido? Que juros foram pagos, a que taxa e que parte foi já reembolsada? Como é que a dívida cresceu, sem benefícios para o povo? Que caminhos seguiram os capitais? Para que foram usados? Quanto foi desviado, por quem e como?
E ainda: Quem tomou emprestado e em nome de quem? Quem recebeu e qual foi o seu papel? Como se envolveu o Estado, quem decidiu, e a que titulo? Como as dívidas privadas se tornaram "públicas"? Quem iniciou projectos inadequados, quem pressionou nesse sentido, quem beneficiou? Foram cometidos delitos, mesmo crimes, com esse dinheiro? Por que não se estabelecem responsabilidades civis, penais e administrativas?
Basta ter em mente essas questões para entender quão enorme é o campo de acção de uma auditoria da dívida pública, que não tem absolutamente nada a ver com a sua caricatura, que se reduz a uma simples verificação dos números feita por contabilistas de rotina. Não é por acaso que os defensores de auditorias argumentem a favor da necessidade da sua realização, invocando sempre duas necessidades básicas da sociedade: a transparência e o controlo democrático do estado e dos governantes pelos cidadãos.
Trata-se de necessidades que se referem a direitos democráticos bastante elementares, reconhecidos pelo direito internacional, embora constantemente violados. O direito de controlo dos cidadãos sobre as acções daqueles que os governam, de obter informações sobre tudo o que diz respeito à sua gestão, seus objectivos e motivações são intrínsecos à própria democracia, dado que emanam do direito fundamental dos cidadãos de exercer o seu controlo sobre o poder e participar activamente nos assuntos públicos.
O facto de o poder obstinadamente se recusar a realizar a auditoria da sua própria dívida e se opor á ideia de alguns intrusos "não-institucionais" se atreverem a realizá-la em seu lugar é indicativo de uma democracia (burguesa e neoliberal) mal formada. Uma democracia aleijada, que no entanto não deixa de nos bombardear mediaticamente com a sua retórica sobre a transparência.
Esta necessidade constante de transparência nos negócios públicos adquire na era do neoliberalismo selvagem e da corrupção desenfreada – sem precedentes na história mundial – um enorme significado adicional: torna-se uma necessidade social e política vital! E é exactamente por esta razão que a transparência na acção é um pesadelo e, na prática, é exorcizada pelos poderosos do sistema, que não mostram a menor inclinação para tolerar testemunhas não convidadas ao seu interminável festim neoliberal. Por outras palavras, no actual período da mais vasta corrupção e de inúmeros escândalos financeiros, as liberdades e os direitos dos cidadãos, antes considerados como "primários", estão-se tornando artigos de luxo cada vez mais raros nas nossas sociedades, estreitamente vigiadas. A consequência directa é que o exercício dos direitos democráticos é muitas vezes visto pelos governos quase como uma declaração de guerra dos "de baixo" contra o sistema. E, naturalmente, é tratado como tal, da maneira mais repressiva...
Seria sem dúvida suficiente a prática dos direitos democráticos "elementares", de facto extremamente políticos, para que a auditoria da dívida pública adquirisse uma dinâmica socialmente salutar e politicamente quase subversiva. No entanto, a utilidade profunda de uma auditoria independente da dívida pública não pode ser reduzida apenas à defesa da transparência e da democratização da sociedade. Ela vai muito além, pois toca em questões qualitativamente superiores e prepara o caminho para processos que poderiam ser extremamente perigosos para o poder estabelecido e potencialmente libertadores para a esmagadora maioria dos cidadãos! Com efeito, exigindo a abertura e a auditoria dos livros da dívida pública ou, ainda melhor, abrindo e auditando os livros, o movimento de cidadãos atreve-se a algo "impensável": entra na zona proibida, no santo dos santos do sistema capitalista, onde, por definição, não é tolerado nenhum intruso!
Ao mesmo tempo, é confrontado directamente e sem intermediários, com o próprio sistema, porque nega o mais essencial dos seus poderes: a monopolização do direito de decidir, de tomar decisões sobre importantes questões financeiras, políticas, ambientais e sociais do país! Ou seja, de decidir o destino de todo o povo... Aqui, já não se trata apenas da transparência simples, ou mesmo da democratização da sociedade. Trata-se de algo muito mais profundo e essencial, da abertura de uma enorme brecha na parede da dominação dos poderosos. De uma brecha pela qual se torna possível vislumbrar, mesmo que vagamente, "outro mundo possível" de visões emancipadoras.
Mais concretamente, a fim de alcançar esses objectivos e responder às expectativas da sociedade, uma auditoria cidadã da dívida pública é, de facto, forçada a ir muito mais longe do que o simples controle da legalidade dessa dívida. Esta poderosa ferramenta pode penetrar profundamente no interior dos campos cercados de poder capitalista, cometer o supremo "sacrilégio" de desafiar a vaca sagrada que é a propriedade privada, a avaliação do montante, condições, efeitos e os beneficiários do endividamento. E isso, realmente, obriga os movimentos sociais, nomeadamente os trabalhadores e todas as categorias de oprimidos, a desenvolver as suas prioridades alternativas com base na satisfação das necessidades humanas básicas.
Por exemplo, criticar o desperdício de recursos para as Olimpíadas de Atenas, é mais do que expor e denunciar a corrupção generalizada que os acompanharam, ou atribuir responsabilidades à gorjeta distribuída tão ricamente. As críticas principais e mais relevantes a estes Jogos Olímpicos são feitas na base de uma visão totalmente diferente da realidade social e ambiental. A que conduz à adopção de prioridades sociais e económicas diametralmente opostas: ao invés de construir instalações desportivas faraónicas, as verbas deveriam ter sido utilizados para investimentos em saúde, educação, melhoria da qualidade dos serviços públicos... Ao invés da betonização extrema da capital, os investimentos maciços deveriam ter sido utilizados para combater as alterações climáticas, a fim de aliviar os cidadãos das cidades já sufocadas. Em suma, ao invés de grandes lucros para uma minoria, a satisfação das necessidades vitais da imensa maioria dos humanos...
Esta visão social e ambiental constitui a base para que comece a emergir não só a necessidade, mas também as linhas gerais de uma outra organização social e económica, ou seja, outra sociedade! Quer dizer que, começando pelo "sacrilégio" de uma simples auditoria da dívida, que revelou aos olhos das pessoas até que ponto o rei (capitalista) que nos esmaga vai nu, o processo evolui rapidamente para uma abordagem de pedagogia colectiva e para recuperar o controle do seu destino "pelos de baixo", ampliando os seus horizontes ao ponto de tornar possível a contestação do poder "dos de cima", que se servem e atropelam os direitos dos outros.
É óbvio que uma tal auditoria da dívida pública não pode ser alcançada sem a participação directa e activa dos "de baixo". Para que exista precisa da criação e desenvolvimento de um movimento social unitário, mas também democrático. No entanto, este movimento não pode e não deve ser reduzido a um papel residual, não pode ser confinado apenas a acompanhar o trabalho de alguns "especialistas" da comissão de auditoria, mesmo que sejam pessoas sinceras comprometidas, ao lado do povo. Ele deve participar no processo da auditoria da dívida, não só porque pode efectivamente ajudar com os seus conhecimentos específicos, os seus testemunhos e suas investigações, mas sobretudo porque é o único capaz de julgar e denunciar a dívida publica, com base nas suas próprias prioridades, suas necessidades e suas próprias visões emancipadoras.
Um tal movimento radical para a auditoria da dívida não se pode contentar em ser meramente teórico. Para se tornar prático, ele deve (auto)organizar-se á imagem da própria sociedade moderna. E para isso, tem que ser como um grande rio para o qual convergem numerosas dinâmicas humanas. Não em nome de um qualquer pluralismo metafísico, mas porque, para ser eficaz, a auditoria da dívida deve estar relacionada com as necessidades das pessoas. Ninguém pode compreender melhor, apreciar, avaliar e defender as necessidades das mulheres do que o próprio movimento feminista; das necessidades dos agricultores do que os pequenos agricultores; dos jovens do que a mobilização da juventude; dos consumidores do que os consumidores organizados; ou do ambiente que os ambientalistas radicais...
Em suma, uma verdadeira auditoria da dívida pública requer a existência de um poderoso movimento no qual se encontrem todos aqueles que querem lutar contra esta dívida e contra as medidas de austeridade que ela implica, para além de todas as sensibilidades da população assalariada oprimida pelo capital. Ou seja, um movimento que, tendo em conta as múltiplas "identidades" dos trabalhadores de hoje (não só produtores mas também consumidores, utentes dos serviços públicos, vítimas de sexismo, violência doméstica e de discriminação de género, vítimas das mudanças climáticas e da poluição ambiental...) tente a sua síntese, para evitar que o movimento se fragmente, se dividida e perca a sua dinâmica emancipadora.
Eis pois uma das razões que tornam imperativo o necessário encontro do movimento da auditoria da dívida pública com os do "Eu não pago" . Esta necessidade não deriva apenas do facto de que ambos representam "os de baixo" e suas resistências. Ela decorre principalmente do facto de que se trata, em vários aspectos de movimentos sociais gémeos, com "filosofias" e dinâmicas semelhantes, e são condenados a se encontrar e enxertar-se um no outro se quiserem desenvolver o seu pleno potencial. Nenhum deles está limitado a uma crítica passiva do sistema capitalista, mas passam à transgressão da legalidade burguesa e capitalista, levantando a cabeça desafiadoramente contra os poderosos e o seu sistema. Ao fazerem isto, criam as condições para a ampliação e generalização da sua abordagem, popularizando a afirmação "Deve ser gratuita a saúde e os transportes, educação e electricidade, gás e creches para os assalariados, os imigrantes, as famílias monoparentais, os pensionistas pobres, os desempregado e os deixados à mercê deste sistema desumano. Sim, gratuitos, porque este não é um luxo extravagante, mas um direito de "os de baixo" e um dever "dos de acima".
A reunião e a junção orgânica de tais movimentos sociais multiplica a sua credibilidade e a sua força, torna também possível uma situação muito importante: acostumar a sociedade "dos de baixo" á ideia de que não estão eternamente condenados a obedecer, resignados ás ordens de seus mestres. Que são não apenas capazes de contestar colectivamente estes mestres e o seu poder, mas que podem ser capazes de os derrubar e os substituir por um novo sistema de tenham decidido!
O processo de auditoria da dívida pública pela sociedade mobilizada pode constituir uma grande oportunidade para os trabalhadores/as, pois lhes oferece uma oportunidade única de entrar em contacto e entender do "interior" questões que lhe são permanentemente inacessíveis e interditas, como o funcionamento do Estado burguês, a economia de mercado nacional e internacional e/ou as relações ou instituições internacionais. Ao desempenhar esse papel pedagógico, a grande escola da auditoria dos livros das contas do Estado pelos trabalhadores e suas organizações, contribuirão para a formação e o desenvolvimento da consciência de classe e anti-capitalista, uma vez que utiliza uma dinâmica semelhante à do controle operário. Uma dinâmica que permite armar os trabalhadores/as, e de um modo geral as vítimas do neoliberalismo, com a vontade de desafiar a tirania do capital e de tomar nas suas mãos o seu próprio destino.
No entanto, estas dinâmicas gémeas dos dois controles não podem esconder diferenças importantes entre eles. Com efeito, enquanto o controle operário abre os livros do patrão, a auditoria da dívida pública passa a pente fino livros do Estado. Enquanto que um (controle operário) parte de baixo para ir para cima, o outro (a auditoria da dívida) inicia-se a partir do topo para descer depois. Por outras palavras, cada um termina onde começa o outro...
Portanto, se o objectivo final de controle operário, que começa na empresa, é incentivar os trabalhadores a por a questão do seu controlo fora do seu local de trabalho, generalizando-o a toda a sociedade e ao Estado, o que acontece com a auditoria da dívida é exactamente o oposto: começando pelo Estado, ele incentiva o trabalhador/a – e todos os oprimidos – a generalizar a sua experiência e impor o controle nos seus locais de trabalho, à produção e onde quer que haja exploração capitalista.
Trata-se, sem dúvida, de uma "inovação" que é o produto directo dos nossos tempos neoliberais, e que ainda não atraiu o interesse da esquerda e seus estados-maiores. Isto não é uma surpresa, porque o que nos falta, cruelmente, sobretudo no Norte global, são estas experiências práticas de auditoria da dívida pública da parte "dos de baixo", que poderiam justificar a pesquisa teórica tendo em vista a análise e a compreensão do "fenómeno". Resta no entanto, o objectivo imediato que é simplesmente o que deve ser feito para que a dinâmica da auditoria da dívida faça o percurso inverso daquele do "controle operário": "descer" para a base da sociedade, para os locais de trabalho, e estender-se a todo o processo de produção!
Assim, enquanto se aguarda o veredicto da práxis "dos de baixo", um ponto está adquirido: face a um adversário de nível internacional, organizado desde há muito, coordenado e armado até aos dentes, e dada a internacionalização extrema da economia, bem como a natureza e a realidade "plurinacionais" da "dívida pública", a busca de parceiros, de aliados e companheiros de luta fora das fronteiras nacionais é uma condição de importância decisiva para o sucesso da auditoria. Por conseguinte, qualquer luta pela auditoria e anulação da dívida que não seja feita em nome e na base de interesses comuns (de classe) "dos de baixo" para além das fronteiras, está fadada ao fracasso. Em seguida, todo o confronto exclusivamente com credores estrangeiros, em nome de uma "resistência à ocupação estrangeira" do país, é, não só totalmente ineficaz, com também é uma luta verdadeiramente quimérica, jogando o jogo da santa aliança dos nossos tiranos nativos e estrangeiros. Á internacional capitalista tão real e tão tangível, nós não opomos o patriotismo, mas o internacionalismo na acção.
A nossa esperança é que a dinâmica da auditoria se concretize e se transforme directamente num internacionalismo prático de combate. A razão é simples: os povos da Europa – mas certamente para além dela, através do Mediterrâneo, onde floresce a revolução árabe – estão todos no mesmo barco da dívida pública explosiva e de medidas de austeridade desumanas. Para estarem em condições de impor a solução que escolheram, devem sentir cada vez mais intensamente a necessidade de colaborar e unir forças contra o inimigo classe comum. Mais e mais pessoas estão convencidas de que não há salvação dentro de suas fronteiras nacionais, que é necessário, aqui e agora que os povos da Europa (de Leste e de Oeste) instaurem a sua União europeia, a união dos povos, a fim de se coordenarem e actuarem em conjunto, na base de um projecto estratégico comum.
Em última análise, " os de cima" fazem muito bem o seu trabalho de sapa de minar as conquistas sociais e todas as formas de solidariedade, ao serviço dos credores ricos e das empresas multinacionais; já é tempo de que "os de baixo" façam o deles, o da união para a auditoria da dívida pública, tão largamente ilegítima...
Notas
[1] O movimento "Eu não pago", que assumiu recentemente uma grande amplitude na Grécia, foi formado em torno da recusa em pagar as portagens exorbitantes em rodovias privatizadas no país. A grande novidade deste movimento muito popular e radical é que não se limita à denúncia passiva dos sucessivos aumentos nas portagens, mas pratica a desobediência activa em massa, forçando as barreiras. Ultimamente, o movimento "eu não pago" está prestes estender-se aos transportes urbanos de Salónica, no Norte da Grécia.
[NR] Um falso problema, como já foi abundantemente demonstrado por resistir.info. Ver por exemplo Acerca da impostura global ou Aquecimento global: Uma impostura científica . A julgar pelo texto, o autor confunde o ambiente local com o clima.
[*] Do Comité grego contra a dívida, membro da rede internacional do CADTM.
O original encontra-se em http://www.legrandsoir.info/Face-a-la-dette-l-appetit-vient-en-auditant-1.html e em http://www.cadtm.org/Face-a-la-dette-l-appetit-vient-en . Tradução de Guilherme Coelho.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .